Dos momentos mais felizes que recordo, neste confuso e disparatado mundo em que vivemos, um dos que nunca desapareceram desta memória saudosa de tudo quanto acontece de agradável tem a ver com a Maria Dulce.
Corria o ano de 1949 ou 50, a Maria Dulce vivia em Castelo Branco onde os pais tinham uma pequena loja de artigos finos, como então se dizia. A Dulce parecia ser um bibelô que ganhava alma logo que saía para o exterior, para a rua.
Nesse tempo, as ruas ganhavam os nomes do imaginário estudantil. Vínhamos do Liceu Nun'Álvares, tínhamos, naquela zona, a Praça (o mercado), a rua da sapataria maldita, a rua da papelaria Semedo etc. A Dulce saía das aulas e dirigia-se à boutique, como era conhecida a loja, que era na rua da papelaria. Eu vivia ali perto, na casa das senhoras Trigueiros. Lembro-me que os meus pais pagavam por mês seiscentos e cinquenta escudos (3, 25 €) por dormida, comida bem confeccionada, saudável, amizade e duas criadas, além das três senhoras Trigueiros de saudosa memória.
A minha idade pouco diferia da Dulce. Ela tinha a mesma altura que eu. Era alta, esguia, de uma beleza tão pura e quase tão irreal, que os miúdos da minha idade a olhavam entusiasmados de prazer, mas incapazes de lhe dirigirem piropos, tão distantes a viam deles. Eu, como vivia ali, encontrava-a todos os dias, sempre acompanhada de uma ou duas amigas. Até que um dia, não resisti e tentei meter conversa. A primeira investida foi sem sucesso, mas...pedra mole...
Julgo que foi pelo carnaval de 1950. Ela pergunta-me:
Vais ao baile no Clube? "O clube era perto da Sé Catedral".
Imediatamente pensei que ela ia. Respondi que iria se ela dançasse comigo.
- Só duas vezes. O meu pai vai lá encontrar-se com uns amigos e depois vamos ao Hotel Turismo. Eu tinha um medo terrível do pai. Era alto e forte e não sorria para quem desconfiasse. Eu não lhe oferecia garantias.
Da primeira vez que dançámos, a minha energia estava ao rubro embora eu tentasse ser discreto, mas ela sentiu e tremeu toda como se fosse desfazer-se nos meus braços. Senti as suas unhas enterrarem-se na minha carne e disse num sussurro: maluco! Não volto a dançar contigo. Mas dançou mais uma vez e desapareceu de Castelo Branco. Por mais que procurasse por ela ninguém tinha certezas. Só quando apareceu o filme "Frei Luís de Sousa" todos gritaram: "é a Dulce, é a Dulce!".
Muito antes já eu tinha subido ao céu à sua procura.
Nesse mesmo ano de 50, estava numa aula de Ginástica (como se dizia naquele tempo). O professor era o Dr. Carriço, um latagão que era médico no Liceu e professor de ginástica. O consultório era partilhado com o Dr. Alberto Trindade, médico principal e mais duas enfermeiras.
A aula era no pátio exterior, na parte mais elevada do campo de jogos. Tudo era enorme, perfeito e limpo. O Dr. Carriço mandou-nos sentar e começou um exercício de braços para o lado e para a frente. A voz cadenciada marcava o ritmo: "em frente, esquerda, em frente, direita". Não sei se foi do sol, se foi do sonho, eu só via a Maria Dulce. Em dado momento, os meus braços ficaram estendidos para a esquerda e paralisados. O exercício terminou e eu continuei no céu, de braços estendidos, agarrado ao meu delírio. Os meus colegas riam deliciados pela situação que previam. O Carriço devia-me olhar surpreendido com a ousadia e, sem entender, que o sonho é mais forte que o homem, foi até ao meu lugar, colocou-se à minha frente. Quando chamou pelo meu nome, olhei-o espantado. O monstro (com amizade) ferrou-me duas bofetadas tão fortes que eu vim do céu à terra, muito mais rápido do que tinha subido.
Nunca mais encontrei a Dulce. Sabia dela pelas suas representações. Vi como cresceu e se transformou. No meu coração continuei a vê-la menina e moça, esguia, muito esguia, muito bela, fazendo cantar poemas e entusiasmos que perduram pela vida e lhe dão a cor, que nela falta.
O meu beijo, Maria Dulce. O beijo eterno de até sempre.
C.S
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