Domingo, 26 de Julho de 2015

A sensibilidade de Corsino e dos Cabo-verdianos

A Mocidade Portuguesa reunia, nas férias grandes, os jovens de todo o Império, em acampamentos de Verão.

Num deles tive a oportunidade de conviver com os jovens de Cabo Verde.

Mas o Verão, numa reviravolta inesperada do Tempo largou toneladas de água sobre o Acampamento, destruiu tendas e quase todas as estruturas. Durante três dias foi o caos. A chuva não abrandava, não havia comida, engolida por aquelas enxurradas sucessivas.

O desespero e o trabalho dos mais velhos para orientar, no meio da desorientação geral, e proteger os mais novos era insano.

No segundo dia, um Cabo-verdiano, dos mais pequenitos, veio ter comigo, que estava encharcado e enlameado e disse-me:

- Comandante – eu era Comandante de Bandeira – Tenho muita fome.

Olhei para ele desesperado, apesar de não comer há mais de 24 horas, não sentia a fome devido talvez ao stresse e por querer solucionar o que era complicadíssimo. Ninguém tinha previsto a tempestade.

Olhei para ele sem saber o que fazer.

- Sabes que todos os alimentos desapareceram nas águas.

- Comandante leve-me à enfermaria.

- Para quê?

- Eu digo que tenho febre.

- Mas não tens.

- Mas eu faço febre. Digo que tenho muita febre.

Fiz-lhe a vontade. Cobri-o com uma tela rasgada das tendas e debaixo das bátegas de água chegámos à enfermaria.

O enfermeiro olhou-nos e perguntou: “que temos?”

Disse-lhe que o jovem devia estar doente e que visse o que podia fazer.

Quando já estava de saída ainda ouvi o enfermeiro perguntar-lhe: “Diz lá o que tens?” Ele com voz cantante e de quem sofre, disse: “tenho muita, muita fome”. Escapuli-me.

Passadas umas duas horas apareceram-me uns sete ou oito miúdos de Cabo Verde, com o jovem e um pedaço de pão para mim. Eles já tinham dividido aquele que o enfermeiro lhe tinha dado.

Como agradecesse e não aceitasse, insistindo que não tinha fome, eles agarraram-me tiraram-me os sapatos e as meias que só eram lama e não me largaram sem que ficassem apresentáveis e eu os pudesse calçar de novo.

Isto nunca mais me esqueceu. Quando em 1959 escrevi o meu segundo livro “TU CÁ, TU LÁ” publicado em 1962, está na Internet. Um dos personagens é Cabo-Verdiano.

Corsino Fortes encontrei-o quando eu era Deputado e ele Embaixador em Lisboa.

Eu tinha recusado o Passaporte Diplomático para não me tentar nas benesses das viagens. Num almoço em que o saudoso Vasco da Gama Fernandes me disse que uma Delegação ia a Cabo Verde, pedi que me fizesse um para eu poder ir em vez do Narana Coissoró.

Eu tinha escrito sobre Cabo Verde sem nunca lá ter ido.

As gentes Cabo-verdianas completaram o que tinha imaginado: são uma delícia de sensibilidade, delicadeza, beleza e inteligência.

C.S

publicado por regalias às 05:35
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